“Ô compadre”
- Mariana Lopes
- 6 de fev. de 2024
- 6 min de leitura
Com proposta de resgatar a memória da cidade e valorizar os artistas locais, portas do antigo Bazar Aliança do Sô Domingos, estão abertas novamente
Quando você fecha os olhos, quais são as lembranças das características da casa da sua vó ou vô que mais vêem a memória? Pode ser que você se lembre que, ao pisar na madeira do chão da sala, o lado oposto da tábua parecia se levantar, ou então de algum um móvel antigo com cristais, livros, oratório e um tanto de “trenheira”; pode ser que você se lembre de quadros, pinturas ou plantas decorando a casa; e quem sabe até mesmo um cheiro ou sabor. A casa de vó de todo mundo tem características peculiares, que vão falar sobre a personalidade dos mais velhos e mais velhas daquele lar, mas, ao mesmo tempo, também terá similaridades “universais” com outras casas de vós e vôs por aí.
Muita gente pode não ter conhecido o dono do antigo Bazar Aliança, ali na rua Bias Fortes, no Centro de Nova Lima, mas a placa ainda está lá e guarda uma história. Após 60 anos, a loja se fecha com o seu falecimento e permanece dessa forma por 15 anos. Agora, em 2023, as portas do bazar estão abertas de novo, com um café e lojinha, que traz uma proposta de resgate à memória da cidade e de valorização dos artistas locais, dando continuidade ao trabalho do compadre Domingos.

Amigo de Chico Xavier
Domingos Gonçalves Ribeiro, mais conhecido como Sô Domingos, nasceu em Capim Branco (MG) em 1920, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial encerrar. Depois morou em outra cidade mineira: Sete Lagoas. Por lá fez amizade com Chico Xavier. Por volta de 1937 foi para São Paulo para trabalhar. Vendia máquinas de costura importadas e brasileiras. Em seguida, fez morada em Belo Horizonte e um dia resolveu construir seu lar em Nova Lima, ficando na Pensão Comércio, na rua Padre João de Deus, mais conhecida como Suzana, no bairro Rosário. Conheceu Dona Bibina Sales e tiveram um flerte. “Mas ela resolveu apresentar a filha dela, Hilda Sales, para ele. Tipo assim: ‘não quero confusão, não’. É uma história interessante essa, porque eles se casaram. Deu certo”, revela o filho do casal, João Bosco Sales Ribeiro.
Mascate
Hilda era professora e diretora na Escola Estadual Deniz Vale; ficaram juntos por 50 anos. Em 1947 o fruto desse relacionamento gerou o primeiro filho, Paulo Francisco Sales Ribeiro, e dois anos depois nasce João Bosco. Na cidade, um dos amigos do Sô Domingos era Zé Companheiro, que também pode ser chamado por José Bernardo de Barros, o pai do ex-prefeito de Nova Lima, Vitor Penido de Barros. “Eles eram mascates, ou seja, vendiam objetos e itens de porta em porta. Meu pai montou o primeiro bazar onde era a Ouro Vídeo, chamava Bazar do Compadre, em 1947. Passado um tempo, por volta de 1954, Sô Arinos Passos, que tinha a farmácia São Lucas e uma alfaiataria, oferece o ponto da alfaiataria para o meu pai, que aluga a loja e muda o nome para Bazar Aliança. Logo em seguida, ele oferece a casa, no mesmo local do bazar, onde a gente morou. Então, ele sai da rua Bias Fortes, nº 11, e vai para o nº 15”, conta.

Sem juros
Durante quase 60 anos como comerciante, Sô Domingos nunca vendeu uma única peça do seu bazar a crédito, negociação a duplicata, nota promissória ou cheque. “Ele anotava tudo no caderninho. Era na confiança. Ele nunca cobrou juros de ninguém. Se a pessoa comprava uma peça, ele anotava, e depois de um ano ela ia lá pagar, era sem juros”. O comerciante era uma pessoa caseira e religiosa. Saia todas às quintas-feiras para Belo Horizonte, ia à missa na Igreja São José, e depois passava nos armarinhos da Avenida Santos Dumont. “Assim ele levou a vida. Uma vez por mês ia a São Paulo. Não tinha bate a volta. Fazia as compras e trazia a mercadoria, o que não conseguia trazer despachava por trem, que chegava pela estrada de ferro de Raposos e Honório Bicalho, ou por transportadora”, lembra João.
Vida simples
Modesto, como salienta o filho, Sô Domingos nunca quis ampliar a loja e faleceu em 2008. “Ele dizia: ‘não quero mudar de vida de jeito nenhum, eu quero ser assim’. Era um homem ligado à igreja, participava da Irmandade de Santíssimo Sacramento. Muito caseiro: era loja e casa. Aos domingos passeava um pouco, via os amigos, cortava o cabelo, mas era isso, vida em família. Era muito alegre, até hoje muita gente vai ao bazar, principalmente as pessoas mais velhas, para matar a saudade. Era ‘ô compadre’ para lá e para cá, sempre brincando com todo mundo, comerciante né”.
Histórias entrelaçadas
Em 1982 Carmem Lúcia Freitas de Castro dá à luz a sua filha Nahra de Castro Fulgêncio Mestre. Em 1991, elas saem da capital mineira e passam a morar em Nova Lima, quando Carmem se casa com João Bosco, filho de Sô Domingos. As histórias se entrelaçam e é Nahra uma das principais responsáveis por resgatar a vida do bazar que ficou aberto no referido local por mais de 50 anos. “O imóvel estava todo revirado, muito sujo, quebrado. Durante a limpeza, quando estávamos na terceira caçamba, percebemos que as pessoas estavam pegando muitas coisas na rua e daí eu vim com uma proposta para vender os objetos pessoais da família e do bazar que davam para aproveitar e também de sermos um espaço de venda consignada”, conta Nahra Mestre.
Bazar do bazar
Assim nasceu o Bazar do Bazar. Várias pessoas contribuíram na limpeza e arrumação da casa até que um dia chegou Breno Oliveira Alvarenga e ficou. Juntos, com ajuda de Geraldo, ex-funcionário do Rego dos Carrapatos, iniciaram a reforma e pintura. “Fizemos a seleção dos objetos, inventariamos tudo, precificamos, catalogamos e a prestação de contas é feita semanalmente para os proprietários, sendo uma forma de eles reaverem todo o investimento que fizeram inicialmente, como a reforma da marquise que estava caindo, acertar as contas atrasadas, todos esses processos. Eles investiram e nós assumimos a manutenção da casa e venda dos objetos, porque se o imóvel ficar fechado, ele vai estragar e isso vai gerar custos também. Tudo do bazar está à venda - como móveis, louças, cristais -, os itens dos consignados, mas menos as coisas que foram doadas e emprestadas. A ideia é da economia circular e o nosso maior desafio agora é tornar a casa rentável e autossustentável”, revela.

O lado B da história
O primeiro presente que a casa ganhou foi um tapete do estilista Roberto Vascon, que enfeita o corredor e a escada. “Porque viu o nosso esforço. A partir disso, as pessoas começaram a se sensibilizar e a contribuir com a casa, seja com suas artes, com objetos doados que o local precisava ou com suas lembranças. Como sou escritora e sempre tive interesse pela história da cidade, comecei a receber muito material, fotos e documentos que resgatavam a memória de Nova Lima. As pessoas chegam no bazar e compartilham suas histórias, mas não essas contadas por George Chalmers - o lado B da história”, salienta.
Valorização dos artistas locais
Aos 30 anos a nova-limense Nahra retorna a Belo Horizonte, mas a vida faz com que ela retorne à Nova Lima. “É a cidade onde eu cresci, amo e me sinto pertencente. Agora, tem dois anos que estou aqui e retorno com paixão e saudosismo. Esse resgate cultural e da memória é um projeto particular meu. Com ajuda do Alan Júnio, do bairro Boa Vista, fiz cópias de um acervo interessante das suas pesquisas históricas, que foi utilizado no conceito da fachada, que foi criada pelo artista João Paulo ‘Bitious’, do bairro Matadouro. Ele fez uma colagem com diversos elementos e personalidades que remetem à história da cidade. Também tem trabalho do artista Filipe Liberato ‘Obi1’, do Retiro, dentre outros. Nisso começamos a participar e a entender os movimentos culturais da cidade”.

Bolo de vó
E como na casa de vó - ou do bisavô - o bazar também tem bolo e café. “Breno é auriculoterapeuta, faz massagem e trabalha com fitoterápicos. Eu também trabalho com ervas, mas no psicoemocional, por meio da produção de cosméticos naturais. E daí, como poderíamos juntar isso num cardápio de vó? Não temos estrutura na cozinha, então produzimos e levamos para vender. Breno faz kombucha, que é uma fermentação natural do chá verde saborizada, como um refrigerante natural. Também temos a natureza e as estações do ano como nossas aliadas, que nos ajuda a desenhar o cardápio. A pitanga colhemos aqui em casa, a jabuticaba tem na casa dos avós de Breno, o bolo é receita da minha avó materna. Assim, temos resgatado a ancestralidade na cozinha, com tudo feito de forma artesanal, com um toque moderno, por exemplo com os waflles”.
Aconchego
Após 15 anos do encerramento do Bazar Aliança, as portas do imóvel se abrem novamente. Ao entrar, cada detalhe exala carinho, aconchego e transforma a atmosfera do local como numa autêntica casa de vó. “É um trabalho de formiguinha. Hoje funciona um café, e os objetos continuam a venda, tanto da loja, quanto da casa. Ao todo foram seis caçambas e reaproveitamos ao máximo possível das coisas. Pintamos a casa preservando as características e temos um projeto de refazer o piso de caquinhos. Atualmente abrimos as quintas e sextas-feiras, das 16h às 21h, e aos sábados, das 9h às 15h, e estamos estudando a possibilidade de aumentar esse tempo de abertura”, encerra.
Comments