top of page
Buscar

Conheça a história do comunista William Dias Gomes. O vereador mais votado de Nova Lima em 1947, assassinado por capangas da mineradora Morro Velho


William tinha que ser morto. E ele já sabia disso. Dias antes do seu assassinato, ele tinha dito a sua esposa sobre o mau pressentimento: “se for preciso, darei meu sangue pelo meu povo, pela minha classe. Eu tenho que lutar até minhas últimas forças. Eu não recuo, porque, se recuasse, estaria traindo o meu povo”. Foi onde hoje é o Sindicato dos Mineiros, na Praça Bernardino de Lima, em Nova Lima, que ele foi assassinado com um tiro no coração e outro, à queima roupa, na nuca. Seus algozes eram capangas da mineradora Saint John Del Rey Mining Company. Ele era gaioleiro na mineradora, comunista e foi o segundo vereador mais bem votado na cidade, em 1947. Após o seu assassinato, um dos capatazes gritava pela praça, a quem o quisesse ouvir: “esse William precisava ser morto! Sempre foi um traidor da Companhia!”. Em um ponto tinha razão: William nunca defendeu os interesses dos ingleses e imperialistas.

 

Em memória ao gaioleiro, comunista e liderança importante da cidade de Nova Lima, o capítulo de hoje, do Escavando a Verdade, é dedicada a vida de William Dias Gomes; em homenagem a ele e a todos os mortos, escravizados e operários - assassinados, soterrados, queimados, explodidos por dinamites ou asfixiados pela silicose - que tiveram sua trajetória de vida atravessadas pela mineradora Saint John Del Rey Mining Company, a antiga Morro Velho, hoje AngloGold Ashanti.



Gaioleiro

William era gaioleiro na mineradora desde 1937, quando tinha 22 anos. Seu trabalho consistia em empurrar, com o ombro, o carrinho, carregado de minério, a dois mil e quinhentos metros abaixo da superfície, sob temperaturas às vezes superiores a 40 graus, respirando uma atmosfera finíssima de poeira de sílica, que provocava nos pulmões a doença chamada silicose e, popularmente conhecida na cidade como “poeira”.

Com o miserável salário, sustentava a mãe, Dona Liberalina, a mulher e três filhos.


 

Atleta do Villa Nova

Quando adolescente, William distinguiu-se como o melhor jogador do Villa Nova. O time foi fundado em 28 de junho de 1908 por operários e ingleses. Há controvérsias sobre o porquê do seu surgimento, mas há evidências do intuito de difundir a prática esportiva aos operários e de competir com o clube Morro Velho, criado pelos ingleses. Os dribles de William arrancavam gritos de entusiasmo à torcida. Todavia, não foi encontrado nenhum documento que atestasse seu vínculo com o clube operário no nível profissional.

 

PCB

O Partido Comunista do Brasil (PCB) chegou a Nova Lima em 1932, cinco anos antes de William ser admitido como gaioleiro na mineradora. De início, o Partidão, como era conhecido, recrutou Anélio Marques Guimarães, que criou, com mais dois operários - Pedro Pinto Carneiro e Geraldo de Souza - a primeira célula dentro da mina de Morro Velho. Esse núcleo assumiu a tarefa de criar o sindicato local, algo que foi feito de forma discreta. A criação da União dos Mineiros da Morro Velho - o primeiro nome do sindicato - nasce em 13 de maio 1934 – data simbólica: o mesmo dia da abolição da escravatura no Brasil. Essas movimentações colocaram a organização comunista local sob a mira repressiva da mineradora.

 

Castor Cifuentes

Inclusive, Castor Cifuentes, espanhol que tem seu nome, honrosamente, nomeando o Estádio Municipal de Nova Lima, foi um funcionário exemplar da mineradora e entrou para a história do time Villa Nova porque administrou o Leão do Bonfim movido por um único sentimento: o amor desmedido ao pavilhão alvirrubro. Castor faleceu em 22 de novembro de 1935 (dois anos antes de William ser contratado pela mineradora), aos 42 anos, e o verdadeiro motivo da sua morte, segundo seus familiares, foi abafado: “meu bisavô não morreu de desgosto, como disseram na época, algo que ainda hoje é replicado por historiadores. A Morro Velho aplicou uma injeção errada nele, eles o assassinaram. Abafaram o caso porque ele era a favor dos operários. Ele não era comunista, ele só não aceitava injustiça e exploração”, disse uma bisneta, que não quis se identificar, ao Banqueta. 



Eliminar contestações

Com a movimentação de organização da classe dos trabalhadores, a mineradora criou uma entidade paralela e divisionista - diluída em 1940 - para disputar a hegemonia contra o sindicato e o movimento comunista local. Em 1936, a empresa, preocupada com a mobilização operária, e aproveitando-se da histeria anticomunista já aderida no país, denunciou como “extremistas” todos os diretores do sindicato e os dispensou. Isso ocorreu poucos meses após a mineradora ceder na disputa em torno do seguro social e assistir à derrota de seus candidatos na eleição para cargos de um conselho previdenciário interno à empresa por uma diferença de 2.500 votos. O propósito da mineradora era, aproveitando a contraofensiva conservadora em curso no país, eliminar qualquer ambiente favorável para contestações operárias e remover a possibilidade da formação de novas lideranças.

 

Dirigentes da greve

É importante contextualizar o clima da época, para entender a chegada de William no cenário e o seu desenvolvimento enquanto liderança comunista. Em fins de 1944, os operários de Morro Velho declararam-se em greve por aumento de salários. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) controlava a impressa, de modo que nenhuma notícia foi publicada. O órgão foi criado em 1939 durante a ditadura do Estado Novo responsável por difundir a ideologia do regime por intermédio da propaganda política e também por realizar a censura; esse órgão existiu até 1945. A greve obteve sucesso e se notabilizou pela eficiência da organização dos trabalhadores. Esses operários, em uma semana, superaram a intransigência dos ingleses e a polícia do Estado Novo. Nessa época, William foi notado como um dos dirigentes da greve.

 

“Não posso ficar sem saber das coisas”

Em 1945, o gaioleiro ingressou no Partidão. Procurava sempre estudar, não apenas literatura marxista, mas tudo quanto pudesse contribuir para o seu desenvolvimento. Certa vez, um bacharel amigo se escandalizou porque William trazia debaixo do braço uns manuais de geografia e português. “Ora, vocês puderam frequentar escolas. Eu tenho de aprender por mim mesmo. Não posso é ficar sem saber das coisas”, disse o gaioleiro. William dedicou o ano seguinte a orientar os mineiros que estavam novamente empenhados no aumento de salários. Fizeram uma greve branca - quando os operários não saem dos seus postos, batem cartão, mas não produzem - e em dois dias, os ingleses tiveram de entrar em acordo. Neste período, a extração de minerais era fundamentalmente manual. Ter operários insatisfeitos, com poucos incentivos, poderia ser desastroso para os negócios.

 

Eleições 1947

Nas eleições de 1947 - quando o Partido Comunista teve seu registro novamente cancelado pelo Tribunal Superior Eleitoral, em pleno Governo Dutra, com base em texto constitucional que proibia a existência de partidos que fossem contrários ao regime - houve uma coalizão entre pessedistas e comunistas, o que garantiu 61,53% dos mandatos de vereadores do Partido Social Democrático (PSD), dando-lhe a maioria na Câmara Municipal de Nova Lima e o consequente apoio ao Executivo. Os comunistas elegeram seus seis candidatos: o vice-prefeito, Jacinto Augusto de Carvalho; o Juiz de Paz, Dr. Joviano Assis Fonseca; e quatro vereadores, sendo dois desses os mais votados. São eles: Anélio Marques Guimarães (768 votos), William Dias Gomes (306), Antônio Liberato da Silva (217 votos) e Pedro Matias Horta (185 votos).

 

Vereador mais votado

Dentre os oito vereadores pelo PSD, esses quatro eram operários da mineradora, de expressiva liderança no movimento. Os comunistas parlamentares criaram o “escritório do povo”, onde hoje é o Sindicato dos Mineiros, na Praça Bernardino de Lima, e recebiam diversas reivindicações específicas das classes populares. William sempre levantou com firmeza, diante dos representantes encobertos da mineradora, as reivindicações dos trabalhadores. Ele não se descuidava dos problemas da cidade e do município. Propunha que fossem distribuídas as terras dos grandes latifúndios das proximidades - o maior deles pertence à própria mineradora - a todos aqueles que estivessem dispostos a lavrar o solo. Algo que, até hoje, em 2025, Nova Lima enfrenta: um grande número de pessoas que não tem onde morar ocupam terras improdutivas da mineradora AngloGold Ashanti e vivem em territórios com conflitos fundiários, sem asfalto, sem água e sem energia elétrica. Situação que se agrava cada dia mais e que a Prefeitura de Nova Lima afirma não poder interferir, já que se trata de terreno particular.

 

Repercussão da luta

William também trazia à tona, na Câmara Municipal de Nova Lima, questões de interesse nacional. Ele era membro do Centro Municipal de Defesa do Petróleo e era considerado, no município, o homem que mais entendia do assunto. Apesar de sua febril atividade política, nunca deixou de trabalhar como gaioleiro no fundo da mina. Como líder e organizador da classe de trabalhadores da mina de Morro Velho, suas ações começaram a ter repercussão no estado de Minas Gerais. Na reportagem do Jornal do Povo, intitulada “O povo luta contra a volta da ditadura”, o periódico belo-horizontino indicou uma onda de protestos dos operários das minas contra o General Dutra, presidente do Brasil entre 1946 e 1951. O texto do jornal possuiu a assinatura de mais de 200 trabalhadores da mina. Provavelmente William estava na coordenação do movimento, que pedia reforma agrária, diminuição do custo de vida, agilidade da Justiça do Trabalho, entre outras pautas. 


Plano Canadense

Em 1948 chegou de Toronto o canadense George Oridean Wigle. Ele foi nomeado novo administrador da mineradora e colocou em prática um inédito sistema para acelerar o ritmo do trabalho nas minas. Entre outras ações estava o aumento das horas no interior das galerias, e exploração ainda mais cruel dos trabalhadores. Era o chamado Plano Canadense, que acabou acirrando a luta de classe em Nova Lima. Havia a gratificação aos operários do subsolo por massa de minério coletado, algo que não se estendia aos trabalhadores da superfície, que teria também o trabalho aumentado. Como líder operário e comunista, William não se calou, e na Câmara declarou: “concito a todos os trabalhadores a abrirem os olhos, porque esse Plano Canadense pode ser muito bom para inglês ver, mas não o será para os operários. Não acredito que esses ingleses venham lá das bandas da Inglaterra e de suas colônias para bancarem os bonzinhos para com os brasileiros, cuja raça eles nem mesmo creem que seja de gente. Daí a necessidade de lutarmos organizadamente na defesa de nossos interesses, porque a Companhia está sabendo lutar pelos seus, em prejuízo dos trabalhadores”.

 

Estopim

Em setembro de 1948, os mineiros conseguiram uma Assembleia Geral que tentou ser boicotada pelo presidente da Junta. Compareceram 1.600 operários. Neste dia, ali, foi eleita a Comissão de Salários, com William à frente, que desempenharia ainda importante papel. Os mineiros exigiam mais sete cruzeiros diários e o repouso semanal remunerado. Na mesma semana, uma notícia correu rapidamente através dos elevadores e galerias das oficinas de redução e de energia: seis feitores, amigos dos trabalhadores, tinham sido mandados embora (é importante destacar que os cargos utilizados pela mineradora, como “feitor”, evidenciam o ranço escravocrata da empresa). Em seguida, a mineradora, tentou mais um golpe: ameaçou despejar, das casas que alugava, aposentados precoces, tuberculosos, silicóticos e aleijados no serviço da mina.

 

Passeata de estropiados

Imediatamente, organizou-se uma grande passeata de estropiados e doentes, viúvas e órfãos, pelas ruas de Nova Lima. Das escadarias da prefeitura, o vereador William, discursou: “no Brasil há uma minoria, dona de tudo, e uma maioria, representada por vocês que estão aqui, e que nada possui. O povo, os operários, só devem confiar na sua própria força, na força de sua unidade e de sua organização. Nada se pode esperar do governo, pois ele é composto de traidores da pátria. Se a Companhia quiser cumprir a ameaça do despejo, os aposentados todos devem ocupar a casa do companheiro mais ameaçado, e não permitir que ele seja despejado. A Companhia é inglesa e a casa fica no Brasil”. Naquele dia, ninguém foi despejado.



Greve de 1948

Foi uma luta de heroísmo e persistência, contra o delegado e o prefeito, a demagogia de certos políticos e as ameaças terroristas do bando de capangas já organizado e armado por Mr. Wigle, que queria obrigar alguns mineiros a trair os companheiros e furar o movimento. Mas, apesar das forças contrárias, em 18 de outubro de 1948 tudo parou. Seis mil operários, de Nova Lima e Raposos, cruzaram os braços. A Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) era como uma milícia privada da mineradora e, como de praxe, foi acionada para os grevistas. À noite, ainda no dia 18 de outubro, milhares de operários fizeram uma passeata e reuniram-se no portão da mina, em frente à entrada. Entre os integrantes estavam os quatro comunistas eleitos vereadores no ano interior: Anélio, William, Antônio e Pedro. No auge da concentração, os trabalhadores foram atingidos por disparos de arma de fogo, algo que nunca foi investigado pela Polícia Civil. A repressão foi tratada como algo natural e até uma resposta desejável em face da “agitação comunista”.

 

Prazo de 30 dias

Em dois dias a greve tornou-se parcialmente vitoriosa. A mineradora aceitava a readmissão dos seis feitores e o pagamento aos operários dos dias de paralisação, além do compromisso de dar uma resposta, no prazo de 30 dias, às reivindicações de salários. Em celebração, William discursou em um comício que reuniu cerca de seis mil operários, na Praça Bernardino de Lima. “Saímos de cabeça erguida porque vencemos. Aguardemos agora o prazo para que a Companhia responda sobre os salários. Concedemos 30 dias, mas seremos intransigentes caso não forem aceitas as nossas reivindicações”, discursou.

 

Revolução Russa

Faltando seis dias para encerrar o prazo da mineradora no cumprimento do aumento de salário, William, junto a outros comunistas, organizaram uma passeata em homenagem ao 31º aniversário da Revolução Russa, que tornou a União Soviética socialista. Durante os dias da organização, William teve um mau pressentimento. Sabendo das ameaças dos capangas, resolveram mudar de local a passeata e se dirigiram ao escritório do povo, na Praça Bernardino de Lima, onde imaginaram que estariam mais protegidos. Foi em 7 de novembro de 1948 que o escritório dos vereadores foi invadido por capangas da mineradora.


Assassinato

William se postou no topo da escada, e aguardou que o primeiro chegasse bem próximo. Neste momento reconheceu Belarmino Barbosa, homem com muitos crimes nas costas, bem pago pela mineradora. William perguntou a Berlamino o que ele queria. “Nós queremos entrar”, respondeu. “Para entrar é preciso pedir licença”, retrucou William. Neste momento o capanga não teve coragem de deflagrar o revólver que já trazia empunhado. Foi um outro, Sebastião de Paula, que, escondido às costas de Belarmino, deu o tiro que penetrou direto no coração de William. Quando o comunista caiu é que Belarmino se animou e deu um tiro na nuca do vereador, à queima roupa. William foi assassinado aos 33 anos de idade, no dia da Revolução Socialista. E ele precisava ser morto porque, na verdade, precisavam matar suas ideias.

 

Homicídio na praça

No mesmo dia, o colega de William, Ornélio Pereira da Costa, conhecido como “Bem”, foi executado com um golpe de paralelepípedo que esmagou seu crânio na Praça Bernardino de Lima. Ao todo, entre mortos e feridos na passeata, foram 22 pessoas atingidas, algo que ficou conhecido como a Chacina da Morro Velho. Depois, o delegado de Belo Horizonte concluiu: “a polícia não poderia ter consentido que no coração daquela cidade funcionasse às escâncaras o escritório dos vereadores do povo, verdadeira célula comunista”. O escritório foi fechado e a repressão aos trabalhistas, sindicalistas e comunistas se intensificaram, inclusive com o assassinato de outra liderança.


Mais uma liderança assassinada

Pouco mais de um mês após a chacina, José dos Santos, o “Lambari”, foi morto numa emboscada, quando retornava de uma reunião de um grupo de mulheres em Honório Bicalho; era sabido, pela população, que o crime havia acontecido pelas mesmas mãos das pessoas que mataram William. Após 11 dias do assassinato de Lambari, em 1949, a mineradora demitiu 51 operários, sem direito a indenização, escolhidos a dedo, sob a acusação de serem comunistas e sabotadores, tendo como justificativa uma suposta queda de produção causada pela greve de 1948 na qual William era um dos coordenadores. E ainda, corria a notícia de que havia outra lista, com mais 400 “vermelhos” (nome pejorativo dado aos comunistas).

 

O maior cortejo fúnebre

Dizem que cerca de duas mil pessoas, homens e mulheres, gente de toda idade, principalmente mineiros de Morro Velho, acompanharam os funerais de William e Ornélio: o maior cortejo fúnebre que Nova Lima já presenciou. Inúmeros operários vieram de Raposos, apesar dos policiais ameaçar e espancar muitos do que se dirigiam a pegar o bondinho. William nasceu em Mariana, Minas Gerais, em 1915. O seu pai morreu quando ele tinha 6 anos. Dona Liberalina, a mãe, dizia que nunca mais quis se casar novamente. Trabalhou como lavadeira, ganhando 500 réis por dia. A esposa de William contou certa vez que ele morreu sorrindo, pois sabia que outros viriam substituí-lo.

 


Silicóticos

Na década de 1930, existiam mais de oito mil operários trabalhando na mina, sendo superexplorados e sem nenhum tipo de proteção ao corpo e à vida durante a atividade laboral. Consequentemente, desenvolveram a doença silicose. Especificamente na região do Galo, onde havia arsênio, muitos foram envenenados. Milhares de trabalhadores, e escravizados, foram mortos em decorrências das doenças adquiridas pelo trabalho, ou em acidentes que soterraram, queimaram, explodiram ou afogaram os trabalhadores de Nova Lima. Em 2016 havia 500 mil trabalhadores silicóticos no país, das empresas de extração mineral e garimpo, de acordo com a Secretaria de Saúde de Minas Gerais.

 

Tantos e quantos

De acordo com informações do documentário “Tantos e quantos: os mineiros do Morro Velho”, de 2019, produzido por Tádzio Coelho, Jorge Pires e Henrique Alves, em 2009 um relatório da AngloGold Ashanti indicava 3.077 mil ex-trabalhadores diagnosticados com silicose. Uma conta que não fecha, visto os inúmeros casos de pessoas que lutaram para ter seu diagnóstico validado pela Justiça, em busca de indenizações, mas que não conseguiram. Sem contar os que morreram ao longo do século. Inclusive, muitos trabalhadores se dirigiam aos médicos da Justiça do Trabalho e não recebiam o diagnóstico correto e isso acabou por criar uma polêmica em Nova Lima, Raposos e Rio Acima, já que os trabalhadores faleciam sem ter a doença diagnosticada e sem uma causa de morte convincente. A polêmica era da possibilidade de haver suborno, visto que os médicos peritos, que faziam avaliação, poderiam ser pagos pela empresa para acobertar o alto índice de silicose entre os trabalhadores da então AngloGold Ashanti. Já no século XX, cerca de 9 mil trabalhadores entraram na Justiça em busca de indenizações, mas muitos morreram antes de finalizar o processo.


Cumplicidade e omissão do Estado

A Comissão da Verdade em Minas Gerais afirma que a repressão desencadeada e mantida contra os operários da mina de Morro Velho - que se intensifica em 1964, ano do Golpe Civil-Empresarial Militar no país - caiu no esquecimento, sem que tenha havido investigações e quaisquer punições aos responsáveis - mandantes e executores - não por inexistirem condições técnicas e elementos materiais suficientes para se tomarem as providências e os encaminhamentos necessários, mas porque as autoridades, mesmo tendo à sua disposição recursos e aparatos suficientes nas esferas políticas, policiais, jurídicas e financeiras, optaram pela cumplicidade e pela omissão.

 

Referências

Todas as informações dessa reportagem foram extraídas dos artigos “Villa Nova Athletic Club: Histórias Do Futebol Operário Em Minas Gerais (1908 - 1952)”, de Roberto Camargos Malcher Kanitz, “Cultura operária: um estudo de caso do Villa Nova Atlético Clube”, de Daniela Alves da Silva e “Figuras do movimento operário: William Dias Gomes”, de Maurício Queiroz, da Fundação Maurício Grabois; do relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais/2017; do documentário “Tantos e quantos: os mineiros do Morro Velho”; e do livro “Morro Velho – A extração do homem”, de Yonne Grossi




Preso político, em Nova Lima, no Golpe Empresarial-Militar de 1964


Ciara tinha 2 anos quando levantou a mãozinha e lançou um tchau sorridente quando viu seu pai, Aloísio Vieira, na carroceria de um caminhão, que subia a rua Santo Antônio, em Nova Lima. O pai não pôde retribuir o tchau da filha, porque suas mãos estavam algemadas para trás e ao seu lado havia um militar que carregava um fuzil apontado em sua direção. Nesse momento, ele pensou que nunca mais teria a graça de ver a filha. Isso ocorreu no dia 1º de abril de 1964, quando o nova-limense era encaminhado ao DOPS, em Belo Horizonte. Era comum “passear” com os presos políticos expostos na carroceria do caminhão da mineradora Morro Velho – uma forma de humilhar e também amedrontar quem se atrevesse a ir contra o regime.


Mas foi na madrugada anterior, em 31 de março, que quatro policiais civis, empunhando metralhadoras, ao lado de dois delatores invadiram sua residência, na rua George Morgan, no Centro, e o prenderam arbitrariamente por 20 dias. Naquela noite, a violência, a tensão e o medo estiveram ao som dos choros compulsivos de Maria Albertina Vieira, esposa de Aloísio e grávida de 9 meses, das cunhadas Emy e Rosa Maria Barbosa, de 9 anos, e da sua filha Ciara Vieira. O episódio do Escavando a Verdade desta edição é em memória a Aloísio Vieira, contador e advogado, falecido em 2017, e que teve sua trajetória de vida atrelada ao sindicato dos mineiros de Morro Velho aos 14 anos de idade.


Aloísio Vieira
Aloísio Vieira

Casamento

Foi em novembro de 1954 que Aloísio conheceu Maria Albertina, em um baile no bairro Retiro, em Nova Lima; ela com 15 e ele com 20 anos. “Eu já via ele no sindicato, porque eu morava na rua Antônio Manoel, onde hoje mora a minha família, ali próximo à Câmara Municipal de Nova Lima. Nesse baile ele estava com uma namoradinha, mas dei um jeito e fiquei namorando ele”, lembra, rindo, Maria Albertina. Eles namoraram até 1960, quando ficaram noivos. Casaram um ano depois, em 1961, quando compraram a casa localizada na rua George Morgan, onde Maria Albertina mora até os dias de hoje. “Em 1962 nasceu a Ciara. E eu tinha uma irmã, a Rosa Maria, que criei. Mamãe faleceu em 1957, quando Rosa tinha 08 meses. Então fiquei cuidando dela, e ela morava conosco. Ela me chamava de mãe”, conta.


Trajetória no sindicato

Com 12 anos de idade, Aloísio foi admitido no Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Ouro e Metais Preciosos de Nova Lima para desempenhar o cargo de mensageiro, em 27 de janeiro de 1947 – mesmo ano em que o município elegeu grande parte dos comunistas para compor a Câmara Municipal. Depois ele foi promovido a auxiliar de escritório, escriturário, assistente do serviço jurídico e gerente administrativo e chefe da secretaria da entidade sindical.


Metralhadoras apontadas

A luta dos mineiros de Nova Lima não iniciou no Golpe Empresarial-Militar, mas bem antes. Eles sabiam organizar os trabalhadores para saírem vitoriosos das greves. Em 1964, resolveram fazer uma paralisação, de dois dias, em solidariedade ao governo constitucional de João Goulart e contra o Golpe Empresarial-Militar. Em 31 de março, na Praça Bernardino de Lima, a tropa de choque da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) se colocou em posição de combate e as metralhadoras foram apontadas em direção ao prédio do sindicato. A ordem era acabar com a manifestação, mesmo que fosse preciso chegar à chacina, conforme as próprias palavras do capitão da tropa, Cristiano Martins da Silva. “O delegado Diocélio de Oliveira Cabral vangloriava-se a respeito da prisão de 22 líderes comunistas em Nova Lima e Raposos. Indicou, no entanto, que considera o feito insatisfatório, pois somente em Nova Lima existem 600 indivíduos de coloração vermelha”, publicou o jornal Estado de Minas à época.


31 de março de 1964

Na parte da manhã do dia 31 de março, Aloísio se dirigiu à sede do sindicato, aonde se colocou à disposição do presidente, para o fornecimento de papéis que fossem necessários. “Ali assisti a chegada de numeroso contingente de policiais militares, que se postou a frente da sede da entidade com armamento pesado, em linha de ataque. Observei o esfacelamento da passeata pacífica que os trabalhadores começavam a formar, com a debandada deles, em correria desordenada, e a tomada pelos militares da bandeira do Brasil e do Sindicato, quadros contendo a efígie de Getúlio Vargas, dos trabalhadores que fundaram o sindicato, etc. Regressei à minha residência muito assustado, como toda a população de Nova Lima, mas, sinceramente, não temia pelo acontecimento sinistro que à noite e madrugada me envolveriam”, contou Aloísio, em entrevista realizada em 2009 e arquivada por Maria Albertina em sua casa.


Choro compulsivo

Na parte da noite, Aloísio contou na entrevista que foi dormir por volta das 22h, depois de assistir televisão. “Nosso querido vizinho, para não falar o contrário, sabia que a minha casa não tinha duas entradas. Ele era metido a mandar e resolver as coisas. Veio junto da polícia nesta noite e fingiu ser Orlando Corrêa de Sá Bandeira, que era muito amigo de Aloísio. Ele imitou a voz e o jeito de Orlando, na janela do quarto das meninas. Então abri a porta e daí eles invadiram, foram empurrando, com escopeta na mão”, lembra Maria Albertina. Aloísio, que estava dormindo, foi sacudido. “Aturdido, vi-me, ainda no leito, cercado por quatro homens que presumi serem investigadores. Portavam metralhadoras portáteis e um deles me disse que me considerasse preso, por ordem do delegado de polícia de Nova Lima. Ouvi os choros compulsivos da minha esposa, da minha cunhada Emy, que morava em minha casa, da minha filha Ciara e de Rosa Maria, minha cunhada de 9 anos. Posso dizer que era um espetáculo dantesco, inimaginável”, relatou Aloísio.


Espancamento de Militão

Em entrevista realizada em 2015, para a Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg), Aloísio trouxe mais alguns detalhes: “Minha casa foi cercada por policiais militares e invadida por quatro policiais civis, acompanhados por dois alcaguetes, Heraldo Otero, sem trabalho conhecido, e Vando Martins, empregado no setor administrativo da Cia. Morro Velho. Fui preso naquela madrugada e levado ao DOPS-MG, onde fiquei detido por 20 dias, juntamente com outras pessoas de Nova Lima, onde assisti ao espancamento de Militão Ferreira Dias, diante de todos, e onde recebi um chute nas costas ao fim de preleção no pátio, sendo tais agressões obras de policiais civis daquele órgão. A senhor Maria Sílvia foi enquadrada no Inquérito Policial Militar (IPM) de 1964, acusada de dirigir uma associação de mulheres, que mantinha relações com o sindicato”, relatou Aloísio a Covemg.


Motivo da prisão

Após ter a casa invadida e ser levado arbitrariamente, Aloísio foi levado, primeiro, à sala do delegado Diocélio, na delegacia de Nova Lima. “Ele tinha ao lado, também assentado, o Heraldo Otero, já falecido, conhecido, desde algum tempo antes, pela população de Nova Lima, de ‘dedo duro’, meu vizinho. Nada perguntei, nem nada me perguntaram. O delegado disse apenas: ‘podem levá-lo para o xadrez’, aonde fui despejado: lugar sujo, asqueroso, que nunca imaginara sequer visitar. Pela manhã fui confortado por meu amigo, tenente Djalma, chefe local do contingente policial e que facultou a entrada até o xadrez do meu saudoso irmão mais velho, Arlindo Vieira, falecido, que me perguntou, com os olhos marejados de lágrimas, o motivo da prisão, o que eu não soube responder”, relatou Aloísio em entrevista realizada em 2009.


Transferência para o DOPS

Na manhã seguinte, em 1º de abril, pouco antes das 10h30, Aloísio recebeu a informação de que seria transferido para a sede do DOPS, em Belo Horizonte. “Imediatamente fui levado até um caminhão, com a carroceria já aberta. Fui algemado, com as mãos para trás, colocado na carroceria do caminhão e vi um policial armado com fuzil, ao meu lado, com a arma apontada em minha direção. Formaram um comboio com viaturas, sendo que o caminhão em que eu estava era o último veículo. Às 10h30, em velocidade lenta, o comboio subiu a rua Bias Fortes. Exatamente às 10h30, soava o apito existente na planta de serviços de superfície da Morro Velho e os trabalhadores, milhares deles, se dirigiam às suas casas para o almoço. Logo, as ruas se encheram de pessoas que defrontavam com o comboio e seus olhares, cheios de surpresas e, logo em seguida, de temor, se cruzavam inevitavelmente com o meu, que ali estava humilhado e ofendido, cada vez mais aturdido e injustiçado”, lembrou o nova-limense em 2009.


Para atemorizar os nova-limenses

Aloísio era muito conhecido em Nova Lima. “Aqui nasci e estudei, até formar-me no curso de contabilidade do Liceu Imaculada Conceição. Eu havia sido presidente da Associação Nova-limense de Estudantes Secundários; fora vereador à Câmara Municipal de Nova Lima entre 1959 e 1962; candidato a prefeito no último pleito havido, e era, portanto, embora oriundo de família humilde, muito conhecido também por ser empregado do sindicato. Minha esposa, Maria Albertina, era funcionária da previdência social; meu irmão, Arlindo, era chefe do serviço de eletricidade da Morro Velho, e o Alvino, um pedreiro muito hábil e simpático. Somente mais tarde percebi que o espalhafato da minha prisão e transferência para o DOPS tinham o objetivo de atemorizar a população de Nova Lima, especialmente os trabalhadores, mesmo porque, naquele momento, os líderes sindicais haviam se evadido”.


O tchau da filha

Maria Albertina, que estava grávida de 9 meses de Cynthia, sua segunda filha, precisava pensar e articular formas de tirar seu marido da prisão. Para isso, resolveu deixar sua irmã, que era criança, e a sua filha Ciara, que era um bebê, na casa da irmã de Aloísio, no bairro Retiro. “O momento mais chocante da desumana prisão e transferência ao DOPS deu-se quando o comboio transitava pela rua Santo Antônio, nas proximidades da igreja do bairro. Vi, num relevo, à frente da residência da minha irmã, Maria de Lourdes, minha filhinha Ciara, então com pouco mais de dois anos; nossos olhares se cruzaram e ela reconheceu-me, alheia às circunstâncias terríveis que me cercavam, levantou a mão direita e lançou-me um tchau, sorridente e ingênua. Pensei que nunca mais teria a graça de vê-la”, revelou Aloísio em entrevista realizada em 2009.


Antecedentes

Em Belo Horizonte colocaram Aloísio junto a outros presos, em ônibus, e foram levados sucessivamente a diversas delegacias, até o paradeiro final no DOPS. Maria Albertina guarda diversos documentos, dentre eles, um que registra os antecedentes de Aloísio. Diz o seguinte: “o nome do marginado consta entre os indiciados no IPM feito em 24 de abril de 1964, para apuração de atividades subversivas. (...) Aluísio Vieira é um produto típico de meio. Criado praticamente no sindicado desde menino, inteligente, esforçado sentiu-se na obrigação instintiva de se subordinar a tôdas as ordens que lhe eram dadas, e quer por medo de perder o ganha pão, quer por ter sido imbuído das ideias que permanentemente girava ao seu redor, êsse moço, do qual acreditamos na sua recuperação, viu-se envolvido por dirigentes desalmados que o utilizaram como fantoche na malversação e desvio de dinheiro do sindicato, do qual era escriturário, tesoureiro, secretário, enfim 'factotum' de um presidente agitador e da sua diretoria subversiva”.


Licença maternidade

Maria Albertina lembra que no trabalho, quando Aloísio estava preso, um de seus chefes lhe fazia perguntas invasivas. “Parecia até que ele era militar. Ele ficava perguntando o que eu tinha na minha casa, se tinha dinheiro, se pegou muita coisa. Era uma espécie de pegadinha as perguntas dele”. Aloísio foi preso na madrugada do dia 31 de março e sua segunda filha, Cynthia, nasceu em 8 de abril, quando Maria Albertina entrou de licença maternidade, o que lhe afastou do trabalho. “Quando conseguir ir visitá-lo no DOPS, levei Cynthia, ela devia estar com uns 10 dias de vida, e ele me pediu para que só a batizasse quando ele saísse da prisão e assim o fiz”.


Preso por trabalhar no sindicato

Ainda no documento que traz os antecedentes de Aloísio, diz o seguinte: “Foi o único dos alcançados por êste inquérito que nos deixou a impressão de ser vítima do meio ambiente. Estêve na reunião de 31 de março de 1964, alegando que ali estava por fôrça de seu posto no sindicato. Foi chefe de um ‘grupo de 11’. Na busca precedida foi apreendida uma carta circular, livros de escrituração do sindicado, que foram entregues ao interventor do sindicato, consta apreensão de cheque do sindicato no valor de 600 mil cruzeiros e depoimentos incriminadores. O nome do marginado consta, entre outros, na relação dos esquerdistas e agitadores detidos pelas autoridades revolucionárias em Minas Gerais”. “Aloísio já participou de alguma reunião do Grupo dos 11, mas ele não era chefe. Sempre teve uma vida ativa na cidade, era conhecido, e tinha um idealismo muito forte, ia às passeatas e em tudo que o sindicato fosse, mas nunca foi comunista, nunca se envolveu nas organizações. Ele foi preso apenas porque trabalhava no sindicato. Quando voltou da prisão, eu falava que ele tinha colocado em jogo a família por causa de idealismo, mas ele sempre dizia: ‘não, eu não participo’”, conta Maria Albertina.


QG da polícia no teatro municipal

No dia 20 de abril, véspera do feriado de Tiradentes, o delegado Diocélio mandou retirar Aloísio da sala prisional. “Afirmou-me que havia revirado minha vida, mas que nada tinham achado que me comprometesse. Levou-me em seguida para o QG da polícia, no Teatro Municipal de Nova Lima, ouviu-me em novo depoimento e liberou-me definitivamente”, contou Aloísio em entrevista realizada em 2009. Neste documento também é possível verificar que Aloísio respondeu ao Inquérito Policial Militar (IPM), aberto em Nova Lima em 01 de abril de 1964, remetido à auditoria da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, mas foi excluído do processo por força de habeas-corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal por falta de justa causa, por decisão unânime, adotada em sessão extraordinária no dia 23 de agosto de 1968. “Quando ele foi levado para Juiz de Fora, para esse julgamento, fiquei sem notícias dele. Não sabíamos onde ele estava. Mas depois ele voltou”, conta Maria Albertina.


Retorno ao sindicato

Após a prisão, Maria Albertina conta que Aloísio voltou ao trabalho no sindicato. “Mas a Morro Velho colocou interventores lá e daí o Onésio Viana, presidente da Delegacia Regional do Trabalho em Belo Horizonte, levou meu marido para trabalhar em BH”. A filha mais velha, Ciara, apesar da pouca idade, lembra que anos depois, o pai ainda tentava colocar as contas do sindicato em dia. “Lembro do meu pai tentando colocar em ordem a contabilidade porque em 1964 eles pegaram muitos documentos. Levaram tudo que eles achavam que podia incriminar o sindicato. Daí anos e anos depois, tipo uns 12 anos depois, ele ainda tentava colocar a contabilidade em ordem”, lembra a filha.


Silêncio

Tanto a esposa, quanto a filha, salientou que Aloísio não contava nenhum detalhe em casa sobre esse período da sua vida, por mais que o estimulassem até a escrever sobre essas memórias. “Ele dizia só que na prisão o mandavam lavar os jipes, mas que ele se recusava, dizendo que era preso político. Para os outros ele até contava que houve muita coisa ruim com o pessoal, mas com ele não. Ele emagreceu muito na época, era chato para comer e a comida lá era horrível. Então ele só reclamou da comida e não podíamos levar nada. Mas falar que sofreu algo físico, ele dizia que não”, salienta Maria Albertina.


“A gente não tem memória”

Outra lembrança que Maria Albertina traz é sobre o medo e a tensão existente na rua e dentro das casas nova-limenses. “Havia um clima muito tenso na cidade. Eu tinha medo de sair sozinha. Você via que as pessoas estavam te olhando, conversando uma com a outra, porque também tinham medo. Eles intimidaram muito, intimidaram todo mundo e em Nova Lima não tem nada sobre isso. Precisamos de conversar sobre esse período e o que aconteceu aqui conosco. Poderíamos fazer um memorial para registrar a história dessas pessoas que foram presas, eu mesma poderia contribuir com o que tenho de Aloísio. Porque não basta fazer apenas um movimento para levantar um pedestal. É preciso debater e registrar essa história, a partir da vida de cada um desses que militaram pelo sindicato para que possamos ter algo relevante”, finaliza Maria Albertina.

  • Mariana Lopes

Com proposta de resgatar a memória da cidade e valorizar os artistas locais, portas do antigo Bazar Aliança do Sô Domingos, estão abertas novamente


Quando você fecha os olhos, quais são as lembranças das características da casa da sua vó ou vô que mais vêem a memória? Pode ser que você se lembre que, ao pisar na madeira do chão da sala, o lado oposto da tábua parecia se levantar, ou então de algum um móvel antigo com cristais, livros, oratório e um tanto de “trenheira”; pode ser que você se lembre de quadros, pinturas ou plantas decorando a casa; e quem sabe até mesmo um cheiro ou sabor. A casa de vó de todo mundo tem características peculiares, que vão falar sobre a personalidade dos mais velhos e mais velhas daquele lar, mas, ao mesmo tempo, também terá similaridades “universais” com outras casas de vós e vôs por aí.

 

Muita gente pode não ter conhecido o dono do antigo Bazar Aliança, ali na rua Bias Fortes, no Centro de Nova Lima, mas a placa ainda está lá e guarda uma história. Após 60 anos, a loja se fecha com o seu falecimento e permanece dessa forma por 15 anos. Agora, em 2023, as portas do bazar estão abertas de novo, com um café e lojinha, que traz uma proposta de resgate à memória da cidade e de valorização dos artistas locais, dando continuidade ao trabalho do compadre Domingos.



Amigo de Chico Xavier

Domingos Gonçalves Ribeiro, mais conhecido como Sô Domingos, nasceu em Capim Branco (MG) em 1920, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial encerrar. Depois morou em outra cidade mineira: Sete Lagoas. Por lá fez amizade com Chico Xavier. Por volta de 1937 foi para São Paulo para trabalhar. Vendia máquinas de costura importadas e brasileiras. Em seguida, fez morada em Belo Horizonte e um dia resolveu construir seu lar em Nova Lima, ficando na Pensão Comércio, na rua Padre João de Deus, mais conhecida como Suzana, no bairro Rosário. Conheceu Dona Bibina Sales e tiveram um flerte. “Mas ela resolveu apresentar a filha dela, Hilda Sales, para ele. Tipo assim: ‘não quero confusão, não’. É uma história interessante essa, porque eles se casaram. Deu certo”, revela o filho do casal, João Bosco Sales Ribeiro.

 

Mascate

Hilda era professora e diretora na Escola Estadual Deniz Vale; ficaram juntos por 50 anos. Em 1947 o fruto desse relacionamento gerou o primeiro filho, Paulo Francisco Sales Ribeiro, e dois anos depois nasce João Bosco. Na cidade, um dos amigos do Sô Domingos era Zé Companheiro, que também pode ser chamado por José Bernardo de Barros, o pai do ex-prefeito de Nova Lima, Vitor Penido de Barros. “Eles eram mascates, ou seja, vendiam objetos e itens de porta em porta. Meu pai montou o primeiro bazar onde era a Ouro Vídeo, chamava Bazar do Compadre, em 1947. Passado um tempo, por volta de 1954, Sô Arinos Passos, que tinha a farmácia São Lucas e uma alfaiataria, oferece o ponto da alfaiataria para o meu pai, que aluga a loja e muda o nome para Bazar Aliança. Logo em seguida, ele oferece a casa, no mesmo local do bazar, onde a gente morou. Então, ele sai da rua Bias Fortes, nº 11, e vai para o nº 15”, conta.


Sem juros

Durante quase 60 anos como comerciante, Sô Domingos nunca vendeu uma única peça do seu bazar a crédito, negociação a duplicata, nota promissória ou cheque. “Ele anotava tudo no caderninho. Era na confiança. Ele nunca cobrou juros de ninguém. Se a pessoa comprava uma peça, ele anotava, e depois de um ano ela ia lá pagar, era sem juros”. O comerciante era uma pessoa caseira e religiosa. Saia todas às quintas-feiras para Belo Horizonte, ia à missa na Igreja São José, e depois passava nos armarinhos da Avenida Santos Dumont. “Assim ele levou a vida. Uma vez por mês ia a São Paulo. Não tinha bate a volta. Fazia as compras e trazia a mercadoria, o que não conseguia trazer despachava por trem, que chegava pela estrada de ferro de Raposos e Honório Bicalho, ou por transportadora”, lembra João.

 

Vida simples

Modesto, como salienta o filho, Sô Domingos nunca quis ampliar a loja e faleceu em 2008. “Ele dizia: ‘não quero mudar de vida de jeito nenhum, eu quero ser assim’. Era um homem ligado à igreja, participava da Irmandade de Santíssimo Sacramento. Muito caseiro: era loja e casa. Aos domingos passeava um pouco, via os amigos, cortava o cabelo, mas era isso, vida em família. Era muito alegre, até hoje muita gente vai ao bazar, principalmente as pessoas mais velhas, para matar a saudade. Era ‘ô compadre’ para lá e para cá, sempre brincando com todo mundo, comerciante né”.

 

Histórias entrelaçadas

Em 1982 Carmem Lúcia Freitas de Castro dá à luz a sua filha Nahra de Castro Fulgêncio Mestre. Em 1991, elas saem da capital mineira e passam a morar em Nova Lima, quando Carmem se casa com João Bosco, filho de Sô Domingos. As histórias se entrelaçam e é Nahra uma das principais responsáveis por resgatar a vida do bazar que ficou aberto no referido local por mais de 50 anos. “O imóvel estava todo revirado, muito sujo, quebrado. Durante a limpeza, quando estávamos na terceira caçamba, percebemos que as pessoas estavam pegando muitas coisas na rua e daí eu vim com uma proposta para vender os objetos pessoais da família e do bazar que davam para aproveitar e também de sermos um espaço de venda consignada”, conta Nahra Mestre.

 

Bazar do bazar

Assim nasceu o Bazar do Bazar. Várias pessoas contribuíram na limpeza e arrumação da casa até que um dia chegou Breno Oliveira Alvarenga e ficou. Juntos, com ajuda de Geraldo, ex-funcionário do Rego dos Carrapatos, iniciaram a reforma e pintura. “Fizemos a seleção dos objetos, inventariamos tudo, precificamos, catalogamos e a prestação de contas é feita semanalmente para os proprietários, sendo uma forma de eles reaverem todo o investimento que fizeram inicialmente, como a reforma da marquise que estava caindo, acertar as contas atrasadas, todos esses processos. Eles investiram e nós assumimos a manutenção da casa e venda dos objetos, porque se o imóvel ficar fechado, ele vai estragar e isso vai gerar custos também. Tudo do bazar está à venda - como móveis, louças, cristais -, os itens dos consignados, mas menos as coisas que foram doadas e emprestadas. A ideia é da economia circular e o nosso maior desafio agora é tornar a casa rentável e autossustentável”, revela.

 


O lado B da história

O primeiro presente que a casa ganhou foi um tapete do estilista Roberto Vascon, que enfeita o corredor e a escada. “Porque viu o nosso esforço. A partir disso, as pessoas começaram a se sensibilizar e a contribuir com a casa, seja com suas artes, com objetos doados que o local precisava ou com suas lembranças. Como sou escritora e sempre tive interesse pela história da cidade, comecei a receber muito material, fotos e documentos que resgatavam a memória de Nova Lima. As pessoas chegam no bazar e compartilham suas histórias, mas não essas contadas por George Chalmers - o lado B da história”, salienta.

 

Valorização dos artistas locais

Aos 30 anos a nova-limense Nahra retorna a Belo Horizonte, mas a vida faz com que ela retorne à Nova Lima. “É a cidade onde eu cresci, amo e me sinto pertencente. Agora, tem dois anos que estou aqui e retorno com paixão e saudosismo. Esse resgate cultural e da memória é um projeto particular meu. Com ajuda do Alan Júnio, do bairro Boa Vista, fiz cópias de um acervo interessante das suas pesquisas históricas, que foi utilizado no conceito da fachada, que foi criada pelo artista João Paulo ‘Bitious’, do bairro Matadouro. Ele fez uma colagem com diversos elementos e personalidades que remetem à história da cidade. Também tem trabalho do artista Filipe Liberato ‘Obi1’, do Retiro, dentre outros. Nisso começamos a participar e a entender os movimentos culturais da cidade”.


Bolo de vó

E como na casa de vó - ou do bisavô - o bazar também tem bolo e café. “Breno é auriculoterapeuta, faz massagem e trabalha com fitoterápicos. Eu também trabalho com ervas, mas no psicoemocional, por meio da produção de cosméticos naturais. E daí, como poderíamos juntar isso num cardápio de vó? Não temos estrutura na cozinha, então produzimos e levamos para vender. Breno faz kombucha, que é uma fermentação natural do chá verde saborizada, como um refrigerante natural. Também temos a natureza e as estações do ano como nossas aliadas, que nos ajuda a desenhar o cardápio. A pitanga colhemos aqui em casa, a jabuticaba tem na casa dos avós de Breno, o bolo é receita da minha avó materna. Assim, temos resgatado a ancestralidade na cozinha, com tudo feito de forma artesanal, com um toque moderno, por exemplo com os waflles”.

 

Aconchego

Após 15 anos do encerramento do Bazar Aliança, as portas do imóvel se abrem novamente. Ao entrar, cada detalhe exala carinho, aconchego e transforma a atmosfera do local como numa autêntica casa de vó. “É um trabalho de formiguinha. Hoje funciona um café, e os objetos continuam a venda, tanto da loja, quanto da casa. Ao todo foram seis caçambas e reaproveitamos ao máximo possível das coisas. Pintamos a casa preservando as características e temos um projeto de refazer o piso de caquinhos. Atualmente abrimos as quintas e sextas-feiras, das 16h às 21h, e aos sábados, das 9h às 15h, e estamos estudando a possibilidade de aumentar esse tempo de abertura”, encerra.

Mariana Lopes | Comunicadora

bottom of page